Quando se fala em maçarico, a imagem que vem à mente é de uma ave que usa seu longo bico como uma sonda para encontrar alimento enterrado na areia ou lama. O maçarico-acanelado (Calidris subruficollis) não se encaixa nesse perfil. Ele raramente é encontrado em praias, seus bicos são curtos e eles usam a visão para encontrar suas presas – como uma batuíra. Até 2013 essa espécie singular era a única do gênero Tryngites.
O maçarico-acanelado tem um porte médio (18cm – 20cm), bico curto e escuro, pernas amarelas e plumagem cor de canela no rosto, dorso e barriga, mas com axilas de um branco-prateado peculiar. Foto: Brad Winn
Talvez a característica mais distinta da espécie seja seu comportamento reprodutivo, o qual foi exibido na série “The Life of Birds” da BBC, narrada por David Attenborough. O maçarico-acanelado é o único Scolopacídeo das Américas que se reproduze em “leks”. Lek é uma palavra de origem sueca que se refere à área onde animais se congregam para dançar e acasalar. É uma das mais lindas cenas do Ártico! De longe tem-se a impressão de que vários espelhinhos estão refletindo a luz do sol na tundra. De perto, percebe-se que o sol reluz nas penas brancas das axilas dos machos, quando eles abrem uma ou as duas asas para chamar a atenção das fêmeas que estão voando ou observando-os atentamente. Depois de escolher um macho, a fêmea deixa o lek para construir o ninho, incubar os ovos e criar os filhotes sozinha.
Outra característica inusitada é a baixa fidelidade, tanto do macho quanto da fêmea, aos sítios reprodutivos. Aves limícolas geralmente são fiéis à área onde reproduzem, com grande porcentagem da população retornando ao mesmo local anos após anos. Já o maçarico-acanelado se comporta de outra forma, a fidelidade é alta aos sítios não-reprodutivos, mas é baixa para os sítios onde se reproduz. Esta baixa fidelidade, juntamente com a distribuição esporádica e esparsa da espécie dificultam a obtenção de estimativas precisas do tamanho populacional – informação importante para definição de ações de conservação.
A dança do maçarico-acanelado na tundra é linda de se ver. Fotos: Shiloh Schulte.
Apesar de não existir uma estimativa precisa, sabe-se que a população do maçarico-acanelado sofreu um grande declínio populacional no último século. Das centenas de milhares ou milhões de indivíduos que existiam no início do século XIX, a população caiu para 35.000 a 78.000 indivíduos nos dias de hoje. Esse declínio é atribuído em grande parte à caça comercial que acontecia nas pradarias dos Estados Unidos durante o final do século XIX e início do século XX. Atualmente a espécie é classificada como ‘quase-ameaçada’ na Lista Vermelha das Espécies Ameaçadas da União Internacional para Conservação da Natureza (UICN) e foi incluída na lista oficial de espécies ameaçadas de vários países das Américas.
Vários aspectos do ciclo anual do maçarico-acanelado, como migração, sítios não-reprodutivos e ameaças, foram estudados durante as últimas duas décadas. A espécie migra pelo interior das Américas (Rota Central) ao ir e vir entre o Ártico onde reproduz (junho a agosto), e o Pampa onde descansa no período não reprodutivo (outubro a abril). Utilizam a estratégia de voos curtos parando várias vezes (“hop and skip”) entre um extremo e outro, em contraste a outras espécies que fazem voos longos com poucas paradas de longa duração (“jump”).
Ao migrar para o sul, o maçarico-acanelado descansa nas pradarias do Canadá e Estados Unidos, especificamente em Saskatchewan, Dakota do Norte e do Sul, Nebraska, Kansas, Oklahoma e Texas. Na América do Sul, descansam principalmente na Colômbia, Bolívia e Paraguai antes de chegarem aos sítios não-reprodutivos no Pampa do Brasil, Uruguai e Argentina. O padrão de migração para o norte é muito semelhante, mas com menos paradas ao longo da América do Sul. Em todos os sítios de descanso, os maçaricos estão dispersos ao longo de extensas áreas e apenas eventualmente são encontrados em bandos de centenas ou milhares de indivíduos.
Mapa exemplificando a migração de um maçarico-acanelado para o norte e para o sul.
A estratégia de migração adotada pelo maçarico-acanelado, ou seja, estar distribuído esparsamente em áreas extensas ao invés de congregar em altas concentrações, e de parar em áreas que produzem alimentos para a população humana, traz mais alguns desafios para sua conservação. Felizmente, a espécie pode coexistir com algumas práticas, dependendo do manejo adotado. Assim, estratégias de conservação para a espécie devem incorporar várias ações, incluindo proteção de áreas, implementação de práticas que beneficiam a espécie e os produtores, desenvolvimento de políticas que beneficiam a espécie e colaboração em escala hemisférica.
Durante essas últimas décadas, vários sítios ao longo da rota de migração foram identificados como importante para o maçarico-acanelado. Atualmente, nove deles integram a Rede Hemisférica de Reservas para Aves Limícolas (WHSRN – sigla em inglês). Na América do Norte, as regiões “Flint Hills” e “Rainwater Basin” são reconhecidas pela WHSRN como Paisagem de Importância Hemisférica para a espécie. Na América do Sul, a Reserva Barba Azul (Bolívia) e a região “Sabanas de Paz de Ariporo y Trindad” (Colômbia) são reconhecidas como Sítio de Importância Regional. Em alguns sítios, a colaboração local entre proprietários de terra e iniciativas de conservação permitiu o desenvolvimento e implementação de práticas que combinam produção e conservação. É necessário reproduzir esses exemplos em escala hemisférica para garantir a conservação de área suficiente para abrigar a maior parte da população ao longo de todo o seu ciclo anual.
Esquerda: Pequenos bandos de maçaricos-acanelados em pastos naturais. Foto: Monica Iglecia. Direita: Bando de maçarico-acanelados no Parque Nacional da Lagoa do Peixe. Foto: Marco Silva.
A Iniciativa para Conservação de Aves Limícolas na Rota Central (MSCI – sigla em inglês) oferece uma estrutura para priorizar ações de conservação voltadas a aves limícolas, incluindo o maçarico-acanelado. A estratégia foi montada com a participação de 242 instituições representando 18 países das Américas e é uma poderosa ferramenta para promover a colaboração internacional e a conservação das limícolas e seus habitats. O maçarico-acanelado é uma espécie-foco dessa nova iniciativa hemisférica que será lançada no final de 2023.
Com uma abordagem de conservação em diferentes escalas, o futuro traz mais esperança para o maçarico-acanelado. Na escala local, conservacionistas, comunidades locais, proprietários terra estão compartilhando interesses e necessidades. Enquanto isso, a MSCI promoverá a conservação em escala hemisférica. O trabalho conjunto de tantas partes interessadas permitirá que o maçarico-acanelado continue a nos encantar com suas danças e singularidades.
Foto da capa: Bandos de maçaricos-acanelados. Foto: Brad Winn.