O que torna as aves limícolas tão únicas?

As incríveis adaptações de quem vive em habitats dinâmicos e perigosos e enfrenta diversas ameaças durante longas migrações

Por: James Lowen

Traduzido para o português por: Ana Júlia Cano

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Habitat adequado é muitas vezes limitado e compartilhado por vários indivíduos de muitas espécies. É somente por meio da diversificação que todos conseguem sobreviver: utilizando diferentes maneiras de obter diferentes presas em diferentes micro-habitats. Além disso, as exigências das aves limícolas mudam ao longo de seu extraordinário ciclo de vida – o que os maçaricos-de-papo-vermelho (Calidris canutus) exigem nos locais de reprodução no Ártico não é necessariamente o que eles precisam nos locais de invernada no Chile. As aves são equipadas com as ferramentas certas no momento certo para seu uso específico, assim como um encanador precisa de um alicate, mas um carpinteiro precisa de uma chave de fenda.

A versão curta e a longa

Quanto mais longas forem suas pernas, mais fundo elas podem ir. As aves limícolas costumam habitar a zona limítrofe e intermitente entre o úmido e o seco. Para usar esse habitat dinâmico e variável, essas aves têm pernas longas em comparação com a maioria dos outros grupos, assim elas podem usar habitats aquáticos para se alimentar sem molhar as penas. Essas variações no comprimento das pernas das aves limícolas fazem com que as diferentes espécies se espalhem pelas áreas úmidas, campos e litorais, evitando a competição.

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Pegar, sondar e abrir

Os bicos das aves limícolas fornecem evidências ainda mais convincentes da evolução das adaptações e determinam onde, como e do que elas se alimentam. De fato, quanto mais longo for o bico de uma ave limícola, mais fundo ela procurará por vermes; isso significa que o maçarico-de-asa-branca (Tringa semipalmata) pode se alimentar ao lado do maçarico-de-bico-virado (Limosa haemastica) sem competição, pois o último tem um bico muito mais longo. Os maçaricos (Calidris sp.) normalmente têm um bico mais longo e estreito, o que lhes permite pegar anfípodes na superfície da água e sondar a lama em diferentes profundidades em busca de vermes.

Não é apenas o comprimento do bico que conta, mas também o formato. Os bicos retos conferem força, permitindo que as aves limícolas maiores, como os maçaricos-de-costas-brancas (Limnodromus griseus), sondem o solo firme. Os bicos curvos oferecem ajuda diferente e variada. Algumas também se beneficiam de uma peculiaridade morfológica inesperada: o bico do maçarico-de-papo-vermelho (Calidris canutus) pode parecer rígido e duro, mas na verdade é um “bico flexível”, com uma ponta maleável que se abre apenas o suficiente para agarrar a presa sem ser inundado por água lamacenta.

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  • Os bicos curvos oferecem estratégias diferentes de alimentação. O bico curvado para baixo do maçarico-galego (Numenius phaeopus) é um verdadeiro canivete suíço. A curvatura facilita o acesso às tocas arqueadas dos caranguejos Uca (conhecidos também como chama-maré), mas também oferece uma grande “área de contato” com a presa e facilita a pegada.
  • O piru-piru usa seu bico grosso e achatado como alavanca para abrir moluscos bivalves ou martelá-los contra rochas.
  • O bico curvado para cima de limícolas como o de Recurvirostra andina traz ainda outra especialização. Ao mover o bico de um lado para o outro embaixo d’água, a ave filtra as presas que estão na água através de lamelas, estruturas semelhantes à pelos – versões minúsculas das barbatanas das baleias rorquais.
  • O bico em forma de cinzel do vira-pedras (Arenaria interpres) o ajuda a procurar alimento embaixo de algas marinhas e até mesmo a… virar pedras grandes.
  • Os bicos curtos e atarracados das batuíras são adaptados para que pegar, bicar e arrancar presas da areia na praia, da lama ou das rochas.

Magia sensorial

O ecologista Theunis Piersma descobriu que o maçarico-de-papo-vermelho (Calidris canutus), o Calidris alpina, o maçariquinho (Calidris minutilla) e outras aves que sondam a linha costeira conseguem detectar “gradientes de pressão” causados por presas enterradas na lama. Piersma revelou que o vão oco da ponta do bico das aves limícolas contém “poços sensoriais” repletos de terminações nervosas chamados “corpúsculos de Herbst”. Esses corpúsculos permitem que uma ave “veja” ao mergulhar o bico dentro da água turva: os maçaricos-brancos (Calidris alba)  podem detectar vermes a até 2 cm de distância – quase o comprimento total do bico.

Visão da batuíra

Para detectar presas minúsculas a uma grande distância – várias vezes o comprimento do seu corpo – as batuíras precisam de uma visão apurada o que explica os olhos notoriamente grandes.

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Muito sal

A ingestão de sal, seja por meio de presas marinhas ou da água do mar, poderia causar a desidratação de uma ave. No geral, as aves não possuem mecanismos para lidar com essa situação, mas as aves limícolas possuem. Sua principal adaptação são as glândulas de sal, que drenam o excesso de sal da corrente sanguínea de uma ave limícola. O tamanho das glândulas depende do quanto elas serão usadas. O tamanho das glândulas também pode variar sazonalmente. Na estação não reprodutiva, o maçarico-de-papo-vermelho (Calidris canutus) tem glândulas muito grandes porque sempre ingere água salgada ao engolir bivalves nas praias. No entanto, enquanto fazem ninhos no interior do continente suas glândulas diminuem pois não ingerem água salgada ao se alimentar.

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Esquerda: Amante das praias, as batuíras têm glândulas de sal mais desenvolvidas do que aves limícolas que vivem em áreas banhadas por água doce. Direita: A Scolopax minor, uma espécie de narceja que nunca habita ambientes salgados, não possui glândulas de sal. Fotos: Maina Handmaker

A ave limícola nadadora

De todas as aves limícolas, nenhuma é mais ligada ao sal do que os pisa-n’água. Os pisa-n’água-de-pescoço-vermelho (Phalaropus lobatus) podem passar nove meses por ano no mar, enquanto os pisa-n’água-de-bico-grosso (P. fulicarius) podem passar onze. Até mesmo o pisa-d’água (P. tricolor), que vive no interior do continente, utiliza lagos salgados como sítio de parada e alimentação ao longo da rota migratória e como sítio não-reprodutivo. O especialista em aves limícolas Joseph Jehl ficou surpreso ao constatar que o pisa-n’água não acumula sal no corpo, ainda mais ao descobrir que isso não se devia ao uso de glândulas de sal, cujo tamanho relativo não era maior do que o de outras aves limícolas. Jehl descobriu que os pisa-n’água usam a tensão superficial da água salgada, que sobe pelo bico quando eles se alimentam, para espirra a água salgada para fora antes de engolir a presa.

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Esquerda: O pisa n’água (Phalaropus tricolor) tem uma adaptação única que possibilita a utilização de lagos hipersalinos. Direita: O maçarico-de-papo-vermelho  é uma das espécies de aves limícolas que reduz os tamanhos dos órgãos para acomodar o aumento dos músculos do coração e peitorais necessário à migração. Fotos: Maina Handmaker

Órgãos que encolhem

Sem dúvida, o truque mais elaborado das aves limícolas migratórias é a capacidade que algumas espécies têm de encolher órgãos do corpo, dando espaço para músculos e reservas de gordura necessários a suas longas viagens. Sabe-se que tanto o pisa-n’água quanto o maçarico-rasteirinho dobram de peso rapidamente antes de migrar (de fato, alguns pisa-d’água examinados por Joseph Jehl ficaram temporariamente gordos demais para voar)! Estudos com maçaricos-de-papo-vermelho durante a migração mostraram que, à medida que o peso total aumentava, o mesmo acontecia com os músculos peitorais e cardíacos – mas isso era compensado pelo encolhimento dos intestinos, fígado, moela, estômago e músculo da perna. Assim, conseguiam reduzir a carga carregada durante o voo. Ao chegarem aos locais de reprodução, depois de finalizada a migração, os tamanhos dos órgãos voltavam ao normal.

Foto de capa: Aves limícolas com pernas e bicos de diferentes tamanhos e formas podem compartilhar um mesmo habitat sem competir por presas. Foto: Maina Handmaker.